Delivery ético, pandemia e outras obscenidades
- Monique Prada
- 19 de mai. de 2020
- 3 min de leitura
Entre a minha boca e a tua, há tanto tempo, há tantos planos e há agora uma distância intransponível ou nem tanto: nosso beijo virou risco de vida. Nenhum rock’n’roll, no sex or drugs. Num mundo estéril, esterilizado por litros de álcool gel e água sanitária, o perigo te esperando na esquina.
Já estava lá, já estava lá mas era visível. Agora, não mais.
Sem pânico: sobreviveremos.
E não, eu não vou ficar aqui na frente dessa tela vazia por horas apenas pra repetir o que quase todo mundo tem dito: que o mundo será muito melhor depois disso tudo, que as pessoas serão mais solidárias umas com as outras, e esse papo furado todo que a gente já sabe que não passa disso mesmo: um tremendo papo-furado.
Isso tudo vai passar e, pode apostar, seremos as mesmas pessoas repugnantes de sempre ou ainda piores, achando ok pagar para que outras pessoas se exponham aos riscos que não queremos correr. Temos dinheiro e não precisamos, afinal: há quem o faça por nós, e por muito pouco.
Olha só, Ana: não vai ao mercado, tu não precisa correr esse risco, por enquanto tem quem possa se arriscar por ti sem te cobrar muito.
Alex Castro questiona, em uma de suas mais recentes newsletters: “seria ético pedir delivery de supérfluos?”
Eu amplio o dilema: é mesmo ético pedir delivery de qualquer coisa enquanto há um vírus letal lá fora, louco pra comer qualquer um de nós por dentro?
É mesmo ético terceirizar esse risco?
É ético terceirizar a morte? Na verdade, há um debate anterior a isso tudo sobre o mesmo tema: seria ético que eu receba a minha comida quentinha em casa enquanto, para que isso aconteça, alguém precisa se molhar? Existe consumo ético no capitalismo? Existe consumo ético? Mas e se eu não pedir delivery, de que se sustentará o entregador e sua família? Porra, Marcelo, não!
Eu não vou bater na tecla já tão enferrujada da falência do sistema, simplesmente por que não temos aqui em estoque outro sistema prontinho pra por no lugar desse.
Eu só queria te dizer que, bom: as pessoas não serão pessoas melhores depois dessa pandemia. E que não, nem o mundo, o mundo também não sairá melhor dessa pandemia. É só mais uma pandemia. Só que assim, deixa eu te dizer: não apela pra esse teu ecofascismo sinistro, não pra cima de mim: o mundo talvez quem sabe até ficasse melhor sem os humanos, a Terra mais limpa e aquele teu blablabla todo que explode mesmo, mesmo é em cima dos pobres, no fim das contas. Eu sou pró-humana, saca?
Eu sou humana, Marcelo, eu faço parte disso, eu faço parte dessa raça que tu finge querer extinta (finge, né? Não és tu mesmo um humano?). Eu sou uma humana, e lutarei até o último momento para que fiquemos por aqui mesmo. Para que a humanidade (da qual eu e - não se faça de surpreso! - você mesmo, da qual nós fazemos parte, fique por aqui mesmo.
Vou, sim, lutar para que a raça humana sobreviva. Vença, quem sabe, afinal. Tomara que a gente consiga encontrar modos melhores para seguir sobrevivendo.
Mas é pra isso que estamos aqui: SIM, eu gosto dos bichinhos, mas nunca, nunca direi que prefiro os bichos aos humanos.
Sai pra lá. Temos muito a fazer por aqui ainda.
(Tudo bem, quem sabe se eu fosse um vírus meu ponto de vista pudesse até ser outro.)

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