Matéria por Juliana Domingos de Lima para Nexo Jornal
Em entrevista ao ‘Nexo’, a ativista pelos direitos das prostitutas Monique Prada responde a questões tratadas em livro publicado em agosto de 2018.
Livro de estreia da prostituta e feminista – ou “putativista” – Monique Prada, “Putafeminista” foi lançado no fim de agosto de 2018 pela editora Veneta como parte da coleção Baderna. Mistura de ensaio e manifesto, a obra expõe as ideias que servem de base para o “putafeminismo”: a articulação de trabalhadoras sexuais para lutar por seus direitos e combater o estigma da profissão, que ganhou repercussão nas redes sociais graças a ativistas como a própria Monique. No livro, a autora apresenta diferentes lados do debate, contradições e disputas com outros feminismos e interpela diretamente o leitor em seus preconceitos, moralismos e opiniões do senso comum sobre o trabalho sexual e aquelas que o exercem.
O Nexo entrevistou Prada sobre as reivindicações do Putafeminismo e seu histórico. A ativista complexifica a defesa da abolição da prostituição e explica como o estigma de “puta” age sobre a totalidade das mulheres. Quando o movimento organizado de prostitutas começou no Brasil? Qual era o contexto e as principais pautas?
MONIQUE PRADA: O movimento brasileiro de prostitutas começa a se organizar no Brasil há mais de 30 anos, na esteira dos outros movimentos feministas - ainda que se possa dizer também que a luta contra a Aids tenha impulsionado o movimento, não apenas pela necessidade urgente de construir políticas públicas de prevenção mas também porque os fundos e governos disponibilizaram mais recursos, o que permitiu que muitas das associações existentes hoje fossem criadas. Mas antes disso, as trabalhadoras sexuais já se organizavam em busca de romper com o estigma e lutar por melhores condições laborais. Talvez se possa historicamente considerar que os primeiros grupos de trabalhadoras sexuais organizadas no Brasil tenham sido formados pelas “polacas”, mulheres trazidas da Europa para atuar nas Américas. Rejeitadas por suas próprias comunidades, elas criaram então comunidades à parte para que pudessem manter sua religião e suas tradições (uma grande maioria delas era de mulheres judias), tendo mesmo criado cemitérios específicos para elas e suas famílias, já que não poderiam ser enterradas junto às “pessoas de bem”. Quando surge o termo “putafeminismo”?
MONIQUE PRADA: Eu não tenho certeza sobre quando e onde ele surge, mas tomei contato com o termo há coisa de cinco ou seis anos, através das trabalhadoras sexuais espanholas, e logo depois passou a ser usado pelas argentinas. No Brasil, junto com Amara Moira comecei a debater sobre o termo e a importância de trazê-lo para o contexto brasileiro, onde o movimento não assumia sua condição de movimento feminista. Em algumas entrevistas de poucos anos atrás, a matriarca do movimento, Lourdes Barreto, chega a falar que o movimento de prostitutas existe para fazer um contraponto ao feminismo, ponto sobre o qual discordamos. No entanto, hoje entendemos que este é, sim, um movimento feminista, e se entende melhor a importância da expressão PutaFeminista. Qual tem sido a importância da internet para a organização das putafeministas?
MONIQUE PRADA: A internet tem exercido papel fundamental para a articulação de atividades e troca de ideias entre as trabalhadoras sexuais brasileiras, nesse momento que nós temos chamado de uma segunda onda do movimento de prostitutas brasileiro. É através da internet e plataformas sociais que temos conseguido crescer em número de ativistas, por conta da facilidade de diálogo com as mulheres ao redor do mundo. É financeiramente viável nos reunirmos por hangouts ou mesmo WhatsApp, e assim podemos decidir os rumos e estratégias de nossas ações. O efeito disso é que hoje temos muitos nomes, muitas de nós produzindo conteúdo e se destacando na luta por direitos, construindo um ativismo pulsante e politicamente bem embasado, um pouco diferente do que tínhamos até bem pouco tempo atrás, em que apenas a voz de Gabriela Leite podia ecoar pelo país. Quais as principais disputas entre esse movimento e outras correntes do feminismo?
MONIQUE PRADA: A prostituição é o trabalho que exercemos. Não é necessário lhe ser favorável, como não é necessário ser favorável a trabalho algum para que ele exista. Mas lutar contra um trabalho que existe, um trabalho possível em nossa sociedade, acaba por prejudicar a vida das pessoas que o exercem, e esse tem sido um enorme ponto de atrito. Lutar contra a prostituição através de leis que inevitavelmente perseguem quem a exerce não é algo que possa beneficiar prostitutas. É como se lutássemos contra a existência de jornais, por que jornalistas são explorados, e então simplesmente tornamos ilegal o funcionamento dos jornais por conta disso, e talvez na sequência pudéssemos proibir as pessoas de acessar as notícias. Poderíamos de algum modo dizer que este tipo de lei favoreceria os jornalistas? Então, basicamente, lutar contra a prostituição através de leis e da perseguição de quem a exerce não é algo que possa beneficiar prostitutas. O que explica o fato de a maioria das profissionais do sexo serem mulheres (cis e trans)?
MONIQUE PRADA: A desigualdade de gênero, que é exatamente a mesma coisa que explica o fato de a maior parte das pessoas envolvidas em trabalho doméstico e de cuidados serem também mulheres. Precisa realmente ser combatida. Sem essa desigualdade, acha que haveria prostituição?
MONIQUE PRADA: Possivelmente houvesse, já que se pode argumentar que mais mulheres se sentiriam mais livres para se tornarem também contratantes, e poderiamos quem sabe experimentar um certo equilíbrio entre o número de homens e mulheres que exercem a prostituição e homens e mulheres que a contratam. No seu livro, você chama a erradicação da prostituição de “utopia distópica”. Por quê?
MONIQUE PRADA: Por que considero a utopia sobre banir a prostituição, até certo ponto, uma utopia aceitável. Não é, realmente, uma coisa animadora que pessoas precisem exercer um trabalho que não lhes agrada por conta de dificuldades financeiras, e o ideal é que nenhuma pessoa precise se expor a isso. No entanto, no mundo real, a recessão e as políticas de austeridade avançam, e é infelizmente um caminho quase que natural imaginar que mais pessoas passem a precisar recorrer a atividades precárias para sobreviver. Então, a ideia de banir a prostituição do mundo nesse contexto apenas empurrará mais e mais pessoas para a clandestinidade, já que por si mesma não é uma ideia capaz de promover outras alternativas para que se obtenha a mesma renda. Quando o prefeito Bruno Covas [de São Paulo] propõe passar os cuidados com o Parque da Luz para a associação responsável por organizar as prostitutas no espaço – com a retirada da segurança e serviço de limpeza –, isso acaba por inviabilizar a prostituição no local, gerando temor e protestos. Então, ainda que a coordenadora da associação local, minha amiga Cleone Santos, considere que a prostituição não seria de fato um trabalho e considere a necessidade de bani-lo, ainda assim ela se opõe a essa proposta, que em última análise seria um caminho para imediatamente acabar com esse trabalho. Mas as mulheres precisam trabalhar, dependem dessa renda, dizem que estão ali porque chegam a ganhar cinco vezes mais do que em outro trabalho. Me parece então que a única estratégia eficaz para reduzir o número de mulheres envolvidas em prostituição seria disponibilizar mais empregos e com melhores salários para as mulheres. Aparentemente, essa é uma estratégia nunca pensada pelo poder público. O que fica nas entrelinhas é a ideia de que se deve punir a mulher que, por qualquer motivo, exerça ou tenha exercido o trabalho sexual. Historicamente, que tipo de políticas abolicionistas foram adotadas no Brasil?
MONIQUE PRADA: O modelo brasileiro vigente de regulamentação da prostituição é abolicionista. Se permite às mulheres que cobrem por sexo, e no entanto todo o entorno é criminalizado. O efeito disso é a precarização do trabalho e das vidas de quem exerce a prostituição.
Como o estigma de puta age sobre o conjunto das mulheres?
MONIQUE PRADA: O estigma de puta fala muito mais sobre controlar o comportamento de todas as mulheres do que sobre a mulher que cobra por sexo. Induz a que todas tenhamos que nos portar de modo a não sermos confundidas com mulheres que cobram por sexo. É esse estigma que mantém o sistema estável: mulheres casando, tendo filhos, cuidando do lar, privilegiando o "sentimento" ao próprio prazer, e muitas vezes abrindo mão mesmo do sentimento por estabilidade. Acredita que o putafeminismo possa transformar a estrutura do trabalho sexual hoje?
MONIQUE PRADA: Sem dúvida, o putafeminismo é também e talvez primordialmente um caminho para que se possa repensar toda a estrutura do trabalho sexual, identificar e combater suas opressões, traçar um novo - e necessário - equilíbrio de forças dentro e fora dos bordéis.
Em que ponto está o debate sobre a regulamentação da prostituição no Brasil hoje?
MONIQUE PRADA: O PL Gabriela Leite está parado, não foi e não deverá ir à votação. Tampouco pode se dizer que é um excelente projeto, ainda que no entanto, legaliza as casas, o que nos tira imediatamente da ilegalidade, criando mecanismos legais para que possamos cobrar o que nos é devido. Há um outro projeto de lei tramitando hoje no Congresso sobre o mesmo tema, que é o PL 377/11, de autoria do deputado pastor João Campos. Este projeto de lei prevê a criminalização do contratante de serviços sexuais, aos moldes suecos. [É um] modelo defendido por muitas feministas, e aqui no Brasil é representado e defendido pela bancada fundamentalista.
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